O Exército nu do imperador continua marchando (The Emperor’s Naked Army Marches On), 1987 – Diretor: Kazuo Hara

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Diferente da Alemanha, que carrega uma culpa imensa (que atravessa gerações) pelas atrocidades cometidas durante o nazismo, o Japão sempre se mostrou resistente em aceitar as responsabilidades históricas pelas atrocidades cometidas contra as populações dos territórios ocupados, além dos crimes de guerra contra os soldados inimigos capturados. Países que sofreram sob a ocupação Japonesa, como China, Coréia, Filipinas e Indonésia, manifestam seu protesto, ainda hoje, contra qualquer homenagem do governo Japonês aos combatentes do exército imperial na segunda guerra. E, de maneira geral, as relações com esses países são frias e desconfiadas, ainda que não exista clima de beligerância entre elas.

É nesse contexto que o extraordinário documentário de Kazuo Hara, “O exército nu do Imperador continua marchando” (The Emperor’s Naked Army Marches On), é tão importante para a história japonesa. O diretor Kazuo acompanha o dissidente Okuzaki Kenzo durante os anos de 1982 até 1987 em sua cruzada contra o Imperador Hiroito e a própria imagem que a história oficial japonesa tem sobre a participação daquele país na II guerra.

Preso por atentar contra a imagem e a segurança do Imperador (atirando contra o palácio de Hiroito com uma espingarda de chumbo), além de assassinar um homem por seus crimes cometidos durante a guerra, Okuzaki se entrega numa cruzada sem medir consequências e riscos. Visita alguns homens (agora idosos) que serviram com ele na Nova Guiné e busca explicações para dois solados fuzilados pelo seu comandante, 23 dias após o fim declarado da II Guerra. Faz, por conta própria, uma investigação sobre o paradeiro desses homens e descobre que eles provavelmente foram mortos para serem devorados pelos solados sobreviventes. A revelação, ou ao menos a suspeita, é revelada em testemunhos fortes e históricos. O exército japonês, cercado e sem suprimentos, apelava para o canibalismo como única forma de sobrevivência. As vítimas eram chamadas de “Porcos Brancos” (prisioneiros europeus) ou “Porcos Negros” (habitantes locais). Com o tempo, soldados doentes ou impopulares sofriam o mesmo destino. Relatos assim foram reportados nas selvas da Nova Guiné e em outras ilhas do Pacífico, onde o exército imperial se espalhara nos anos anteriores. A derrota da marinha imperial e a interrupção no fornecimento de suprimentos isolaram exércitos inteiros. Relatos de canibalismo se espalharam pelo pacífico.

Okuzaki ameaça e agride os oficiais responsáveis, acusando-os e humilhando-os na frente da Câmera de Hara, que adota um estilo narrativo que lembra o mestre Yasujiro Ozu: enquadramentos distantes da ação, como forma de manter-se distante do protagonismo dos “atores”, mostrando ao mesmo tempo respeito e fascinação com a ação. A paleta de cores em tons escuros ressalta o tom de luto e a tristeza daquelas pessoas, destroçadas pela guerra. O incômodo provocado por Okuzaki ao desenterrar os mortos do passado, e a sua postura por vezes violenta e exaltada, contrapõe-se aos normalmente passivos e ordeiros japoneses, tornando-o um personagem poderoso e magnético.

A necessidade de revelar a verdade, por mais dura que ela seja, e de tirar o Japão da sofreguidão de sua “história oficial”, torna o dissidente Okuzaki um personagem inesquecível. E o diretor Hara entrega um documentário poderoso, que não toma partido em sua narrativa, nem procura explicar fatos históricos. Usa de cortes secos e deixa Okuzaki falar e agir por conta própria, ainda que não esconda o fascínio que sente pela trajetória daquele homem.

Um verdadeiro estudo sobre a Culpa, que torna a vida daqueles que sobrevivem uma experiência torturante.

Viver pode ser pior que morrer.Muito pior.

 

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