O Cinema e os 20 anos da Guerra do Iraque

No último 20/03 completou-se 20 anos da segunda guerra do Iraque, declarada de forma unilateral pelos Estados Unidos – como apoio dos seus sócios de sempre – e justificada por mentirosas provas que indicariam o Iraque como dono de um arsenal de “armas de destruição de massa”.

A mentira era uma suspeita mundial, mas a imprensa ocidental nem piscou ou ficou rubra de vergonha. Estudou independentes apontam para números que chegam próximo de 1 milhão de mortos como resultado da guerra, a ação da resistência e o caos subsequente.

O cinema, em especial o estadunidense, não ousou problematizar o próprio país como fizera com a Guerra do Vietnam. De fato foi uma guerra distante, que só ganhava (alguma ) relevância nos canais de comunicação quando alguma patrulha do exército era atacada numa estrada ou algo do tipo. Ela existia, e eventualmente incomodava, mas sem os traumas morais do passado. Os Estados Unidos dos anos 2000 salivavam ódio pelos ataques de 9/11. Além disso, eram bem mais cínicos que nos anos 70. E certamente mais individualistas.

O Cinema, em parte, capturou essa relação estranha com o conflito. Ao invés de apostar em filmes épicos ou de ação puramente escapistas, a guerra de 2003 foi refletida mais como um refúgio para as psiques estadunidenses. O Iraque tornou-se o novo México, o lugar “mágico” para saciar os desejos de afirmação violenta e busca desesperada de sentido para vidas esmagadas pela falta de perspectiva humana. No filme “The Hurt Locker” | “Guerra ao Terror” (2008), de Kathryn Bigelow, o veterano William James (Jeremy Renner) solicita retornar para a Guerra por absoluta capacidade (tédio?) de viver numa sociedade asséptica e consumista. A cena que James se vê cercado por intermináveis gôndolas em um supermercado e o seu absoluto vazio existencial na vida civil se mostram até mais desconfortáveis que as escaramuças e explosões do Iraque em convulsão. Dor imperialista? Provável. Eu chamo de “síndrome Wayne”. O Soldado de Jeremy Renner grita pelo deserto, ainda que ele flerte com o conforto da civilização. Lembram o final de “The Searches”? Fosse feito hoje, a porta se fecharia num trôpego john Wayne, vacilante entre gôndolas de um mercadinho…

O filme de Bigelow transforma o Iraque no lugar mágico para o desafogo de aventura e violência do homem branco americano, sem restrições morais e éticas. É o ethos do guerreiro branco e entristecido pelo amor insano ao deserto, seja ele mexicano ou iraquiano…

Já em o “Sniper Americano” (2014), de Clint Eastwood, acompanhamos a vida de um cidadão comum (os heróis de Eastwood são comuns…médios…não se encontra neles nada de especial. Quase nada), o sniper Chris Kyle, outrora cowboy fracassado que encontra no serviço militar uma redenção para a sua própria história pessoal. Eastwood filma Kyle (Bradley Cooper) como um cruzado em sua missão divina contra o mal. O Personagem é construído como alguém alienado, preciso no seu ofício e aparentemente desprovido de dúvida. Um homem de certezas e de ação, que se envolve na guerra e dela nutre significado para a própria vida. Não…Kyle não sente os arrepios de uma vida sem sentido como William James. Ele faz o trabalho, sem muitos questionamentos e ou dúvidas. Um soldado perfeito. Um patriota perfeito. O retrato de Eastwood é competente, mas o cineasta não é crítico ao personagem. Ele o compreende e respeita o seu patriotismo inquebrantável. Uma composição de personagem problemática. Os caras da nova Hollywood transformariam fácil o personagem de Cooper num psicopata.

Em o “Sniper Americano” de Clint Eastwood, a Guerra não é discutida. Ela é um fato. Os seus autores vivem a paz da consciência

Já o veterano Brian de Palma foi impedido – ou quase – de distribuir seu filme “Redacted (2007)”. Filme feito com baixíssimo orçamento e combinando realidade e ficção, o filme de De Palma é um grito – quase solitário – de denúncia. Seu filme denuncia o barbarismo de 4 soldados estadunidenses, estupradores de uma menina Iraquiana. E assassinos da sua família. O Diretor volta basicamente para a mesma situação do seu filme (retardatário) sobre o Vietnam, “Pecados de Guerra” (1989). Mas se apoia nas imagens capturadas nas redes sociais para retratar o caos Iraquiano. A Guerra virou mais um tema para ser deglutido pelos algoritmos. A desumanização, o ensimesmamento e a alienação dos seus concidadãos é a tragédia…as pilhas de iraquianos mortos são apenas o reflexo, ou o resultado…

O filme experimental de Brian de Palma sobre o absurdo da Guerra do Iraque

Já Paul Greengrass, celebrado diretor de thrillers políticos e de ação, mergulha no Iraque caótico pós invasão para retratar os interesses da burocracia americana, ilhada na tal zona verde – antigo complexo palaciano de Saddam Hussein – para, a partir dali, tentar trazer “democracia e progresso” para o Iraque. Seu filme “Green Zone” | Zona Verde (2010) fracassou relativamente nas bilheterias, e mesmo as críticas foram mornas. Talvez público e crítica esperassem de Greengrass um Thriller de ação sem o tom crítico e pessimista da obra.

Matt Damon faz o militar bem intencionado e inflado pelos ventos da vingança que, amargurado com o fardo do homem branco nas terras agrestes do Iraque, começa a entender a lógica da guerra e a impossibilidade de resolução do conflito. O filme é relativamente bem sucedido ao mostrar a falta de objetivo claro dos estadunidenses, muito competentes para começar a guerra e ocupar o país mas incapaz de pensar uma estratégia de saída. Como cinema, no entanto, o filme alterna competentes cenas de ação com uma trama política que vai ficando progressivamente intricada, prejudicando a fluidez da narrativa. A direção de Greengrass aqui parece um pouco mais comedida, em especial na trêmula câmara na mão de suas cenas de ação.

Matt Damon e o fardo do homem branco no Iraque

Por último, o pequeno filme de Doug Liman, “The Wall | Na mira do atirador” (2017) é muito eficiente como thriller de guerra, minimalista, que acompanha a luta especifica e cheia de regras particulares entre dois franco-atiradores: um estadunidense, sobrevivente de uma emboscada conduzida por um soldado Iraquiano. O filme “brinca” com a figura de um suposto sniper Iraquiano chamado Juba, tornado lenda por uma matéria do jornal inglês “The Guardian” em 2005. A matéria relata a existência de um eficientíssimo franco-atirador do exército iraquiano, que após a invasão se junta a resistência armada e inicia uma série de ataques furtivos realizados nas cidades e em linhas de suprimentos dos exércitos ocupantes.

O Filme de Liman abandona os grandes temas presentes nos filmes de Greengrass e Bigelow. Ou mesmo o tom de denúncia de De Palma. Ele está mais interessado na tensão crescente entre os soldados que lutam um tipo específico de combate, técnico e sofisticado nas suas regras. O filme também é eficiente ao mostrar o sniper iraquiano (só conseguimos escutar sua voz por meio da fonia que ele estabelece com o soldado americano) como alguém ardiloso, mas culto, inteligente e obviamente dotado de um propósito que o soldado americano jamais poderia equivaler. O que faz da obra um eficiente retrato da impossibilidade estadunidense de vencer a guerra. O Soldado, acuado num muro semidestruído por um franco-atirador Iraquiano, no meio do nada de um Iraque destruído, é o símbolo perfeito do desastre estadunidense no Iraque.

A Guerra completou 20 anos e a impressão que fica é de uma certa timidez do cinema, ao menos do cinemão americano, no retrato fílmico do evento. Seja por embaraço ou mesmo desinteresse do público médio. Diferente da guerra do Vietnam, que marcou para sempre a alma americana, o Iraque representou um ruido distante e estranho para uma sociedade abalada em seu orgulho e incapaz de lidar com tantas crises econômicas, políticas e sociais nos anos seguintes, até os dias atuais.

Espera-se, talvez daqui uns anos, com mais distanciamento e com a corrosão que as medidas desastradas dos governos americanos trouxeram para a influência do seu país naquela região, o cinema possa voltar o tema. De forma mais crítica, se possível…

O cinema de Loznitsa e a Tragédia Ucraniana

O Cineasta Sergei Loznitsa

A recente expulsão do cineasta Sergei Loznitsa da academia de cinema da Ucraniana, em resposta à posição do cineasta contra o cancelamento dos cineastas russos críticos ao regime russo, talvez tenha sido, até o presente momento, a notícia do campo cultural mais relevante sobre a guerra Russa-Ucraniana.

Justo o cineasta que, dias antes, publicara um manifesto de incontido fervor patriótico, conclamando a resistência contra os russos. A histeria antirussa, cancelando qualquer traço da cultura russa – de compositores e escritores do século XIX até esportistas e musicistas da atualidade – é decerto um dos capítulos mais vergonhosos da história recente europeia. E Loznitsa, ao se insurgir (ao menos em parte) contra essa onda irrefreável, acabou de certa forma afetado por ela.

A noticia me fez refletir sobre os filmes que o cineasta dedicou sobre a história recente do seu país. Refiro-me, especificamente, ao extraordinário documentário “Maidan (2014)” e da antificção “Donbass (2018)”.

O Cineasta é inimigo declarado de Putin. O Seu cinema possui uma missão: investigar, apontar, questionar e refletir o passado soviético e suas implicações sobre a moderna Rússia. No cinema soturno de Loznista, a experiência histórica soviética é cinza e amarga. Uma experiência sociológica baseada no esforço titânico da construção de um estado totalitário e brutal. No seu espantoso documentário ” Funeral de Estado (2019)”, o cineasta narra os últimos dois dias de exéquias de Stalin, a partir de impressionantes registros cinematográficos de jornalistas, cineastas e técnicos, convocados à época pelo estado soviético para documentar o evento. O Filme é um primor de pesquisa, de tratamento e recuperação visual, de edição e de linguagem cinematográfica. E também um eficiente estudo sobre o totalitarismo e suas implicações sobre o inconsciente coletivo de uma nação.

O cineasta investe toda a sua filmografia neste mergulho crítico na psique Russa. E é sempre muito ácido. Numa entrevista para um jornal europeu, por conta do lançamento do seu “Donbass (2018)”, diz o cineasta: ” A Rússia não tem passado nem futuro. Apenas um presente infinito…”

Logo, revisitar o cineasta é receber uma perspectiva importante sobre o conflito Russo-Ucraniano.

“Maidan (2014)”, de Sergei Loznitsa

Começo, portanto, pelo poderoso “Maidan (2014)” . O cineasta traz a sua câmera para os eventos da praça Maidan, em Kiev, durante a revolta civil – os chamados Euromaidans – que protestavam contra  Viktor Yanukovych, o então presidente Ucraniano. Eles exigiam uma aproximação da Europa e um afastamento da órbita de Moscou.

O filme se inicia com a multidão cantando o hino Ucraniano. Só escutamos as pessoas que estão no palco, conduzindo as manifestações. São vozes quase decorativas. O filme quer mesmo é mostrar a multidão. A câmera de Loznitsa está fascinada por elas. A Imagem é muito poderosa, simbólica até. Por trás do fervor patriótico, tem algo que as liga. Um frenesi religioso, uma fome de liberdade e de pertencimento. O Hino voltará a fazer parte ao menos mais duas vezes durante o longa de duas horas.

Através de pouquíssimos textos, que estruturam o documentário e servem para estabelecer os seus atos narrativos, o filme vai descrevendo os acontecimentos por meio de uma câmera distante e longe dos seus principais atores. Tudo é movido pelas massas, o que é obviamente uma simplificação dos eventos, mas atende aos princípios do seu realizador. Como se aquelas pessoas estivessem ali movidas por um sentimento maior. Destacar um ou mais protagonistas descaracterizaria a mensagem do longa e a visão do documentarista. O momento histórico que ele quer registrar é o rompimento dos grilhões russos, como um valor totalizante e intrínseco do povo Ucraniano.

A câmera imóvel é absorvida pelo ambiente. As pessoas desviam do quadro, enquanto perambulam pela praça. O Filme se desloca de algum prédio onde pessoas trabalham na organização e, paulatinamente, mergulha nos acontecimentos da praça. Através da naturalidade da linguagem de Loznitsa, os sons, cantos e o agito das pessoas mostradas na tela, vão nos indicando a tensão crescente daquele lugar.

Raras vezes o palco, montando na praça e centro nervoso das manifestações, é mostrado. Nestes poucos momentos, líderes religiosos, seja discursando ou em cânticos, dão um tom sacramental ao filme. Mais uma peça do seu discurso moral. Quando religiosos e não políticos (ucranianos e estrangeiros) são mostrados, a narrativa escolhe, mais uma vez, eleger o povo como protagonista da revolta. E, envolto na benção religiosa, abraça o código cultural mais profundo da população. Não existem tintas – ou interesses – políticos ali. Ao menos, é o que o filme defende.

Um filme é sempre uma experiência particular. Cada de um nós pode – e deve – se apropriar do que vê para articular os nossos mais variados sentidos sobre a obra. Da mesma forma, cabe ao seu realizador o direito maior de dar a obra o sentido que quiser. A Troca – ou diferença – de percepções é sempre um estranhamento criativo essencial para o desenvolvimento do próprio cinema. Bem, o realizador de “Maidan” produz uma obra poderosa, sedutoramente imagética sobre os eventos na praça. Escolhe mostrar o fervor popular, sacramentado nos cânticos religiosos e nos funerais, que encerram o longa. Uma brilhante peça política, que celebra o despertar da cidadania ucraniana e a alvorada de um sonho europeu.

O filme é uma corrida de sentidos, onde as imagens gritam mais do que qualquer discurso. Não existe contradição ali, no movimento ou no seu arco de apoios. Ou mesmo na violência das suas ações. A única cena que demostra alguma suspensão das certezas inabaladas do filme, são aquelas que mostram um policial sendo alvejado (por quem?), em cima do telhado de um dos prédios que circundam a praça. No mais, a pulsão de liberdade e coragem popular molduram nossas sensações e emoções. Em especial na metade final do documentário.

A Obra é um libelo europeu tocante. Talvez a homenagem recente mais direta ao sonho europeu, já abalado pela troika financeira e incapacidade das economias mais frágeis atenderem às exigências do rigoroso banco central Europeu. Ainda assim, incompleto para entendermos os desdobramentos daquele movimento de massas. E nem se espera esta resposta do filme. De qualquer Filme. Mesmo um documentário. O documentarista enxerga o mundo através das suas lentes. Cabe a nós problematizá-lo e dar-lhe as muitas interpretações possíveis.

O Longa não demonstra interesse nas articulações de políticos estadunidenses e europeus durante as manifestações. O filme não mostra a participação de extremistas, que aos poucos vão tomando parte das manifestações. O filme não aceita contradições. Ele é realizado no fervor do momento, quase como um grito. Não quer refletir nada, mas sim sentir. Não tem o distanciamento temporal que nos faz ver a realidade com mais sobriedade, mas pulsa paixão.

Entre “Maidan” e “Donbass”, a Ucrânia experimentou toda a sorte de problemas. Cinco dias depois da queda do presidente Yanukovych, a Rússia invade a Criméia, majoritariamente Russa, e a anexa. Ao leste, as províncias de Luhansk e Donetsk revoltam-se contra os rumos de Kiev e declaram independência. Na sequência, o exercito ucraniano e milícias de inspiração neofascistas tentam sufocar esse levante ao leste. Segue-se uma guerra de baixa intensidade, mas quente o suficiente para ceifar mais de 15 mil vidas.

Politicamente, o pais também fica longe da estabilidade. Antigos líderes fascistas e colaboracionistas dos alemães na segunda guerra, como Stepan Bandera, foram em alguma instância reabilitados. Estátuas foram erigidas, ao passo que o russo e o seu legado eram crescentemente combatidos. Monumentos russos e ou soviéticos eram cancelados. Uma lei, aprovado pelo congresso em 2019 (que já tramitava desde 2012), exige que o Ucraniano seja a única língua oficial do país, multando o seu uso por oficiais públicos, para profunda irritação de moscou e as numerosas regiões ucranianas ao leste, majoritariamente russófilas. A desestruturação política causada pelo movimento Euromaidanista abriu as portas para os aventureiros políticos de plantão, como Petro Poroshenko, corrupto e ligado aos oligarcas mais nebulosos do país, além de entusiasta da radicalização do discurso político contra os Russos. Além disso, é preciso afirmar, o movimento Euromaidanista, como muitos outros naquela época, em várias outras parte do mundo, também não trouxe uma elevação do debate político, mas sim, sua absoluta capitulação à radicalização afobada de agentes políticos aventureiros e descompromissados com qualquer agenda verdadeiramente nacional. Ao caos resultante, promessas – nunca cumpridas – de uma absorção do país pelo consórcio europeu.

Em meio ao turbilhão dos eventos, o realizador apresenta o seu “Donbass (2018)”, feito, segundo ele, para “desmistificar as mentiras de Moscou” à cerca do conflito no extremo leste Ucraniano.

“Donbass (2018)”, de Sergei Loznitsa

A obra é estruturada sobre quase-esquetes, que retratam o cotidiano daquela guerra esquecida entre Ucranianos e separatistas do Donbass (Luhansk e Donetsk), onde o humor desajeitado é entrecortado – ou interrompido – pela mais inaudita violência, brutal e estúpida, como em qualquer guerra.

Aqui, a lente de Loznitsa percorre o universo daquela república russófila com intenções muito mais claras do que em “Maidan”. O Tom ácido e jocoso da obra retrata os russos – ou Ucranianos Russófilos – como possuidores dos mesmos vícios da nacionalidade Russa: embrutecida, corrupta, cínica e profundamente tirânica.

Numa determinada cena, um jornalista alemão tenta passar por um check-point, e é confrontado por milicianos, que perguntam: “Você é fascista? Se você não é, certamente o seu pai foi”. Ao meu ver, uma forma grosseira de desmitificar as acusações russas das infiltrações de unidades paramilitares de aberta inspiração nazista, seja na estética como no discurso. Ao escolher essa frase, cuspida por um miliciano embriagado, ele descaracteriza essa evidência e, mais uma vez, fecha os olhos para as contradições da sua Ucrânia.

O filme deglute e vomita as imperfeições do universo Russo, apresentadas em sequências desconcertantes e, algumas delas, absurdas. Numa cena, pessoas da sociedade civil tentam apoio de um político local para um evento cultural desimportante e de fundo moral e religioso. É possível encontrar, no canto superior do enquadramento, o quadro de Stalin, como se o ditador, mesmo defenestrado na própria União Soviética após a sua morte, irradiasse ainda sua energia tirânica para toda a alma russa. Numa outra cena, um militar Ucraniano é amarrado num poste por dois soldados, como forma de penitência e humilhação (que de fato ocorreram naquela região), até que ele é admoestado por uma malta de pessoas enfurecidas, gritando e ameaçando um homem desarmado. A mise-en-scène emula a espontaneidade documental, tornando a cena indiscutivelmente muito poderosa. Mas ela é antificcional, como aliás é todo o filme, que opta por transitar entre a realidade documental e o absurdo, sem estabelecer, no entanto, nenhuma relação emocional com o público. Passíveis, nos resta acompanhar o estranho desenrolar de personagens, alguns mais realistas, outros incrivelmente grotescos.

E ai chegamos no momento mais nevrálgico do longa, a indigesta cena do casamento. Tudo ali é feito para nos agredir, sobretudo pelo descalabro estético e moral representado pela cena. Um casal desengonçado e barulhento celebra suas bodas em meio milicianos armados, políticos corruptos e outros coadjuvantes daquela tragédia. A cena é eficiente em mostrar a fratura racional daquele ambiente, mas ao mesmo tempo flerta com o pior tipo de caracterização preconceituosa.

Por outro lado, o filme é bastante eficiente ao apresentar como uma guerra de baixa intensidade se desenvolve, operando numa zona cinzenta onde a vida civil e militar convergem. Então, lançadores de foguetes de saturação disparam indigentemente contra uma determinação direção, e como se aquilo fosse uma banalidade, são recolhidos e se movimentam para um outro local. A Guerra interrompe a ordem da vida civil, mas sem a urgência e a violência de um conflito convencional.

A visão unidimensional do diretor mais uma vez ignora a atividade de batalhões extremistas do lado Ucraniano. Alguns, inclusive, incorporado às fileiras regulares do exército. Também ignora os motivos que levaram alguns cantões russos na Ucrânia para o rompimento formal com Kiev.

Mais uma vez, não se exige e espera este tipo de posicionamento do filme. O filme é de Loznitsa e segue a sua visão dos acontecimentos. Seu cinema é absolutamente honesto nos seus princípios e intenções.

No ocidente, seus filmes são celebrados, muito por seu merecimento. Não existe documentarista como ele, que vai, filme a filme, refinando sua técnica impressionante, uma combinação potente de talento, sensibilidade e árdua pesquisa. Mas o seu posicionamento marcadamente antirusso, ou abertamente conflituoso em relação a Putin, atrai indiscutivelmente o interesse e apoio ocidentais.

Ao apontar fervorosamente os pecados russos, Loznitsa não reflete – ao menos através do seu cinema – as crescentes contradições do seu próprio país. Seu cinema ignora a Ucrânia que abriga a estética neofascista de alguns grupos, que não resolve muitas das demandas clamadas pelos Euromaidanistas, que preserva – e amplia – o poder dos seus oligarcas e que soterra, paulatinamente, a prática politica convencional, pavimentando o caminho para aventureiros.

Num momento de crescente tensão contra o vizinho indigesto, a experiência conciliadora seria mais uma das forças contrárias ao impulso da guerra. Da leitura das possibilidades reais do país. De navegar pelos muitos interessantes que circundam a Ucrânia, eleita como novo campo minado da nova-velha-guerra-fria, sem esbarrar nas ciladas da história.

No momento em que eu escrevo essas pobres linhas, a guerra já entra no 33º dia. Devorando a razão. E inaugurando um novo momento geopolítico. Deixemos o cenário mais complexo para os analistas e fiquemos com o horror da tragédia humana que se apresenta para os nossos olhos já cansados de tanta violência.

Tomar consciência sobre estes eventos por meio do cinema é necessariamente contar com a contribuição de Loznitsa para essa reflexão. Mas é importante entender seus limites, muito mais políticos do que fílmicos.

Que a guerra acabe logo.

Dois perdidos numa sala suja de cinema

Aproximadamente 25 anos atrás, meu grande amigo Fabiano Bender (que por essas coisas da vida moderna, acompanho apenas por meio das redes sociais) me chamou para uma mostra de filmes do Zé do Caixão, do “Mojica”. O Fabiano, que estudava cinema na FAAP, já tinha feito um curso de atuação com o próprio Mojica, meses atrás. Aliás, eu e o Fabiano, no início dos anos 90, vivíamos e falávamos de cinema, o tempo todo. Sempre.

Foi um momento de descobertas em nossa vida cinéfila. Democrática. Conciliávamos da Novelle Vague ao terror Italiano. Devorávamos tudo. Naquela época, Internet e Streaming eram conceitos inexistentes para garotos como nós, desesperados para consumir o que pudéssemos, na empobrecida São Bernardo do Campo dos anos 90.

O Cinema de horror era a nossa grande convergência estética e temática. Saboreávamos as experiências Gore do jovem Peter Jackson. Vibrávamos com Dário Argento e Lúcio Fúlvio. Mas só cultuávamos um cineasta: Zé do Caixão, o Mojica.

Preciso lembrar, novamente, como era difícil encontrar cópias de VHS de filmes independentes ou fora da máquina da indústria cultural. Vasculhávamos os sebos do centro de São Paulo, e quando achávamos uma cópia escura e cheia de ruídos de um “Exorcismo Negro”, por exemplo, celebrávamos como arqueólogos vasculhando alguma ruína do mundo antigo. Em especial filmes brasileiros.

É importante lembrar: o cinema brasileiro tateava uma lenta recuperação depois do desmonte da era Collor. Naquela época, Walter Salles lança o Grande Terra Estrangeira (1996), um filme profundo e histórico sobre a desesperança da minha geração. Dessa época, lembro do Fabiano cantar repetidamente “Vapor Barato”, da Gal Costa, que encerra o filme de Salles. Aliás….dos finais mais poderosos do cinema brasileiro.

Terra Estrangeira (1996), de Walter Salles

Foi o quando o Fabiano conhece o curso do Zé. Semanas depois, em pleno inverno (de 94, 95, 96….não sei….não me lembro mais) ele me convida para um evento extraordinário: uma amostra dos filmes do Zé do Caixão, num cinema do centro que eu honestamente não me lembro mais. Em disparada, e de forma sucessiva, seriam exibidos: ” A meia-noite Levarei a sua Alma (1964)”, “Esta noite encarnarei no teu Cadáver (1967)”, “Exorcismo Negro (1974)” e “Delírios de um anormal (1978)”.

O Cinema aparentava a decadência dos cinemas do centro: assentos rasgados e barulhentos, projeção sem brilho e som ultrapassado. Pelo que me lembro, o cinema estava vazio, resultado da apatia do nosso cinema e do esquecimento sofrido pelo Mojica (que seria resgatado do silêncio preconceituoso no começo dos anos 2000). Então, celebrávamos ali a nossa identidade cinéfila. Mais, um ato de resistência do nosso cinema. Do cinema Brasileiro. Assim enxergávamos aquele dia.

Mas não quero descrever o dia de forma épica ou sisuda. Besteira. Lembrando hoje, em perspectiva, lembro-me com uma saudade que dilacera o peito dos excessos e ilusões da juventude. Das possibilidades que se abriam. Dos sonhos mal resolvidos…

Fazia frio. O Fabiano me emprestou um sobretudo, que pertencera ao seu pai. Eu o vesti e o honrei como um detetive desajeitado de um filme noir da RKO. Da viagem que fizemos, de São Bernardo até o Centro de São Paulo, aquecíamos nossa ansiedade conversando sobre…filmes. E, andando pelo centro da cidade, num imaginário e longo plano sequência, filosofávamos sobre tudo.

Aquele ambiente de paralisia econômica e de derrota social, de cansaço e desesperança – tão presentes hoje – ajudaram a compor, também, a mágica daquele dia.

Éramos dois estudantes perdidos numa sala de cinema suja no centro da cidade, assistindo excertos da obra do Mojica, cineasta genial e maltratado pelo estúpido senso comum.

Voltemos ao cinema. Antes dos filmes, entra um Mojica misterioso, cercado de alunos. Aparentava cansaço; mesmo assim, conseguiu agitar os presentes ali. Explicou um pouco cada um dos filmes. Fez recomendações. Agradeceu todos ali. Sentou-se num canto. E as projeções começaram…

Melancólico, penso eu hoje. Um Homem que lotou salas de cinema, entre o final dos 60 e começo dos 70, devorado pela máquina do entretenimento mais babaca do país, tornando-se uma figura exótica, e não celebrado pelo artista que era. Me senti assim à época. Mas não lembro de ter comentado com o Fabiano.

Aqueles quatro filmes, disparados sem interrupções, nos consumiram quase 7 horas. Saudades daquele dia, daqueles tempos, das possibilidades, dos sonhos, de se apropriar de um universo fílmico tão específico e de se aproximar, ao menos por uma tarde, de um ícone da nossa formação cinéfila.

Inspirados pela experiência, começamos a rodar curtas de horror. O Fabiano tinha uma super 8. Avançou depois para uma câmera VHS, que nos dava mais liberdade para editar e criar.

O Fabiano, utilizando a natureza que cercava sua casa de praia em Boracéia, fez a sua versão de “Delírios de um Anormal”. O Filme exalava o frescor do horror do Mojica: Brasileiro, com cheiro de vela, alma penada e cemitério abandonado.

Tudo isso está lá, com ele – o Fabiano. Acho. Será que esse material foi consumido pelo tempo? Nós estamos sendo consumidos por ele. Porque não um punhado de fitas de VHS.

Mais algum tempo depois, participamos de um festival de curtas, patrocinada pela prefeitura de São Bernardo. O Filme esbanjava refino na estética da direção do Fabiano. O Filme falava pra dentro, para a nossa turma. Brincava com a nossa cinéfila errática. Brincava com a frase de alguém – não me lembro quem – que entre uma coca e uma coxinha, vaticinou: “Eu adoro Monicelli”. Nascia o curta “Eu adoro Monicelli”, onde um casal crescia, amadurecia e, por fim, se casava. A Brincadeira era com o diálogo. A garota sempre terminava o quadro dizendo “ahhh, eu adoro Monicelli”…Ela era a Cristie, adorável no papel da garota esperta que ama cinema. Eu era apaixonado pela Cristie….

E eu também era o Padre, que entre caras e bocas, celebrava o casamento, entre risos incontidos e citações jogadas ao vento. Tudo misturado, fruto de 3 dias incansáveis.

Me lembro quando o filme foi apresentado, durante o festival. Não ganhamos o prêmio, mas essa experiência “indie suburbana” do Fabiano tirou risos da audiência.

Hoje, tudo mudou. Vieram os compromissos, a família, o trabalho, os escapismos, as desculpas…Tudo ficou rápido e agridoce. A vida moderna sequestrou a nossa doçura. Ao menos a minha. Está tudo lá, amontoado no saco das minhas memórias.

Mas hoje, 13/03, li em algum lugar que o Mojica faz aniversário. A Tampa da memória se abriu. E entre uma lembrança mal traçada aqui e ali, procurei rabiscar em frases simples, minha conexão com o Mojica. E com o Fabiano Bender. E a Cristie. E o cinema…

O cinema Chinês soou o clarim da guerra cultural

Pôster do Filme “A Batalha do Lago Changjin”

Com o colapso da União Soviética, os anos 90 prometiam um futuro promissor para os operadores políticos e militares do império. Foi uma época louca, de mudanças rápidas e brutais. O mundo parecia convergir para um ponto determinado, que aceitávamos sem maior reação. Aquilo que Fukuyama bradou como “O Fim da História” mudou a agenda política, social e econômica do mundo – em especial da esquerda ocidental.

O cinema industrial estadunidense, desobrigado das suas funções alienantes, desarmou – em partes – a mobilização de guerra criada na era Reagan. Não cabia mais rotular russos, em especial, como seres frios e desumanos. O Bêbado Yeltsin prostrava-se ante o ocidente, enquanto o império soviético ruía. Filmes estadunidenses do final dos anos 90 e começo dos 2000 apresentavam, então, russos quase infantis, tateando suas primeiras experiências capitalistas. Assistam o começo do filme “Náufrago (Cast Away)” – Ano 2000 | Dir.: Robert Zemeckis como exemplo acabado deste período.

O mundo geopolítico adormecera. A transição dos anos 90 para os 2000 prometia uma década de consumo e amenidades.

Mas tudo mundo com o 9/11. Passado o susto, os Estados Unidos se puseram em marcha. E seus grandes estúdios produziram, nos últimos 20 anos, uma infinidade de filmes comerciais, marcadamente oficiais, carregando nas tintas da nova ideologia americana, a “Guerra Contra o Terror”. Poucos filmes avaliaram criticamente este período. Com pouca resistência crítica de alguns realizadores e atores, Hollywood abraçou a militarização do seu cinema, sem muita precaução. Não, não esbarraram no pastiche patriótico de Rambos e Bradocks. Mas, ainda assim, o cinema estadunidense pôs-se em marcha.

Filmes como “Falcão Negro em Perigo (Black Hawk Down) – Ano 2001 | Dir.: Ridley Scott ou mesmo “Guerra ao terror (The Hurt Locker)” – Ano 2008 | Dir.: Kathryn Bigelow apresentaram as forças armadas como a reserva moral da nação. Discurso esse que se mostrou progressivamente perigoso, para o próprio sistema político estadunidense. Mas o desalento da ideologia americana vista através dos filmes é matéria para o outro texto.

O longo preâmbulo finalmente encontra o seu objetivo: lembrar o leitor da capacidade política e ideológica do cinema. E não precisamos nos lembrar de Eisenstein ou Leni Riefenstahl para entender o papel do cinema – e das artes, como um todo – complexo jogo geopolítico, e como se movimenta a indústria cultural dos países protagonistas. Ficou famosa a expressão “Soft Power” criada pelo acadêmico de Harvard, Joseph Nye. O intelectual descreve, em seu livro “Soft Power: The Means to Success in World Politics (2004)”, a forma como a política se apropria dos meios culturais – da indústria cultural propriamente dita – para o atingimento dos seus interesses específicos. O fenômeno, obviamente, não é novo. Mas, devidamente “fichado” por Nye, ele ganhou, nos últimos anos, contornos e empregos cada vez mais sofisticados. Toda uma nova forma de operar a política – interna e externa – foi ressignificada com o emprego dos estímulos culturais e potencializada pelas redes sociais. A primavera árabe, os levantes populares – jovens, na sua maioria – em países como Brasil, Turquia, Ucrânia, Hong-Kong…todos eles, insuflados, mais ou menos, por tecnologias ardilosas e por um sofisticado aparato cultural, composto por documentários, filmes, músicas ou qualquer outro estimulante cognitivo. Um verdadeiro arsenal psíquico, capaz de definir o sabor do vento da história em várias regiões e sociedades.

Exemplos? No documentário “Capacetes Brancos ( The White Helmets)” – Ano: 2016 | Dir.: Orlando von Einsiedel, seus realizadores mostram o cotidiano do pelotão de resgate sírio nas áreas ocupadas pelas forças insurgentes e contrárias à Damasco. Bem…eles são treinados na Turquia, esbravejam contra os ataques da força aérea russa – que apoia Assad – e verbalizam discursos de liberdade, em meio ao bravo serviço de resgate das áreas afetadas. O Filme ganhou o Oscar de melhor documentário daquele ano. Numa determinada cena do documentário, a câmera capta uma aeronave Russa mergulhando para atacar seu alvo. Ao fundo, escutamos os locais esbravejaram: “Covardes”. O apelo civil contra o horror dos ataques aéreos nos comove desde Guernica. Nada é mais violento e covarde do que o emprego de sofisticado engenho para atacar imprecisamente um alvo civil. É a pura lógica do horror selvagem.

Os versados em semiótica, comunicação e psicologia de massas, da engenharia social, poderiam escrever páginas e páginas sobre esse tema. Não me compete e não cabe aqui.

Voltemos ao cinema.

Russos e Chineses (em especial os primeiros), alvos presentes de caracterização rasteira dos filmes de ação do ocidente, organizam-se. Usam do vigor do seu aparato audiovisual para disputar o campo das narrativas nos mercados audiovisuais globais. Os Russos já colocaram seu arsenal fílmico em marcha, produzindo especialmente filmes de guerra, que exortam o sacrifício do povo russo na guerra patriótica (1940-1945). Produzem em escala semelhante à soviética, ainda que a qualidade dos mesmos não seja uniforme. Existem, no entanto, bons filmes, que podemos tratar por aqui oportunamente.

Mas o texto quer discutir a resposta chinesa, no mesmo nível das caracterizações ocidentais, superlativa e barulhenta. A China, discreta no campo geopolítico, a grande beneficiária da lógica de produção pós-queda do muro de Berlim, sempre evitou o conflito. O seu cinema médio – dedicado para o público interno e externo – centrava-se em grandes épicos e dramas históricos. Destaco Zhang Yimou (Lanternas Vermelhas; Herói; O Clã das Adagas Voadoras; Shadows etc) como um autor símbolo deste cinema. Existe também um cinema mais urbano, moderno, voltado para a China atual. Crítico quando possível. Cineastas como Wang Xiaoshuai (Bicicletas de Pequim; Sonhos com Xangai; Até Logo, meu filho etc)

E dentro deste ambiente cultural que expande sua influência – o mercado audiovisual Chinês já é o maior do mundo, superando o estadunidense, arrecadando cifras próximas a US$ 3 bilhões – existe um entendimento cada vez maior da elite política chinesa sobre o potencial do cinema como peça importante na complexa engrenagem das disputas globais.

E ai chegamos ao filme “A Batalha do Lago Changjin” (2021), a maior bilheteria de 2021, com uma arrecadação próxima ao Bilhão de dólar. O Filme apresenta uma leitura – oficial – muito particular e enviesada da participação Chinesa na Guerra da Coreia (1950-1953).

Com um orçamento próximo a US$ 200 milhões de dólares, a superprodução chinesa contou com o apoio oficial do PC Chinês – logística, apoio técnico, investimento. O Lançamento do filme se deu em meio às festividades do aniversário de cem anos do PC Chinês, e vários oficiais políticos e militares compareceram ao lançamento.

E o lançamento do filme se dá num momento de aumento de fervura dos canais diplomáticos e por uma verdadeira disputa de xadrez nos Oceanos Indico e Pacífico, onde as armadas chinesas – que cresce e dá saltos operacionais que assustam os estrategistas ocidentais – e estadunidenses se estudam em intrincados e perigosos jogos e simulações de poder militar.

O filme, em si, não traz nada de novo. Na verdade, apoia-se em efeitos especiais em demasia, que tornam o filme, em alguns momentos, pra lá de artificial. Ainda que o valor de produção seja facilmente percebido, a muleta da digitalização afeta a entrega da obra, ao menos no seu realismo e brutalidade, típicos de um filme de guerra contemporâneo. O filme é realizado pelos conhecidos cineastas Chen Kaige, Tsui Hark e Dante Lam e estrelado pelo muito popular ator, Wu Jing.

O que chama atenção da obra é maneira caricata e panfletária como retrata os estadunidenses. As falas dos atores americanos soam artificiais, idem para as suas ações. O filme retrata os militares estadunidenses como arrogantes, apoiados pelo seu extraordinário aparato bélico. Em especial, seus aviões, que assumem uma forma quase monstruosa, dilacerando soldados chineses com fúria demoníaca.

Poucas vezes os estadunidenses foram retratados de uma forma tão caricata. São retratados como vilões frios e arrogantes. E nós, aqui ao sul do Equador, não temos como esboçar um sorriso contido, como se estivéssemos assistindo uma travessura.

E aqui, entendemos o julgamento moral que o filme faz. A Tropa Chinesa, enviada por Mao para proteger a fronteira Chinesa – e o norte Coreano – de uma investida norte-americana, é a quintessência do soldado abnegado: pobre, orgulhoso, motivado e ciente da sua causa. As carências materiais dos soldados chineses são apresentadas com inconfesso orgulho. Soldados totais, que vencem qualquer obstáculo, quando tomados pelo senso patriótico. Numa cena, os chineses estão famintos e sob uma terrível tempestade de neve. Eles vão compartilhando suas poucas batatas. Sobe a trilha sonora que oferece um quadro sentimental e épico à cena. Corte para o acampamento americano, onde o soldados se empanturram de carne e cerveja.

Essa comparação de realidades reflete a moral da guerra moderna, onde o uso de aparatos tecnológicos para matar o inimigo, sem nenhuma chance de reação, e com poucos riscos, define a guerra assimétrica típica das últimas décadas. O filme não quer refletir densamente o tema, mas se utiliza, habilmente, dos códigos visuais aqui mencionados para estabelecer a superioridade moral do soldado chinês frente ao americano, crente na sua fé inabalável na guerra mecânica e asséptica.

Esse diálogo imagético, carregado de simbolismo, não é novo no cinema, obviamente. O roteiro, assinado por Jianxin Huang e Xiaolong Lan, é apoiado por quase todos os estereótipos dos filmes de guerra. Eles não estão interessados em questionar a racionalidade da Guerra, como Kubrick, ou a solidão existencial do soldado, como Fuller. Longe disso. O Filme é uma peça de propaganda política, envolta em ares de super produção, cheia de efeitos visuais e barulho entorpecente.

O Público chinês amou. Transformou o filme na maior bilheteria do cinema mundial 2021. Pouca importa a verossimilhança histórica.

O filme mostra, ao menos por hora, que o público médio chinês, não está interessado em críticas ao seu modelo político-econômico, ou aos personagens recentes da sua história. Por isso, a timidez de Hollywood para criticar a China. Nos anos 80, o encantamento com o modelo chinês , que contrastava com a depressão soviética, fez da China um lugar convidativo aos olhos e paladares ocidentais. Filmes como “O último Imperador”, de Bertolucci ou “O Império do Sol”, de Spielberg, retrataram a China em seus filmes como um lugar caótico e belo.

A ofensiva cultural chinesa foi posta em marcha. E a influência desse cinema de resposta e exaltação cresce na influência para além dos bastiões chineses no sul da Ásia.

Cada vez mais assistiremos a filmes assim. O Campo cultural também sentirá o peso da tensão geopolítica e, do seu modo, oferecerá respostas na mesma moeda, na longa batalha pela construção da narrativa que vai definir o curso do século XXI.

A série “Missa da Meia Noite” como parábola de um mundo sombrio e sem esperanças

A Série “Missa da Meia Noite”, da Netflix, é a nova peça do universo antológico do criador Mike Flanagan, que utiliza o gênero do horror para discutir as cada vez mais complexas e dolorosas relações humanas da nossa contemporaneidade. Somos quase 8 bilhões de pessoas que se acotovelam nas ruas e nos bites, cada vez mais divididos nas cores políticas, nas estratificações das classes sociais, na crescente fome por consumo de bens, apavorados pelos limites da vida moderna e envoltos na vastidão perigosa das redes sociais. Algo como o mundo líquido de Bauman, progressivamente instável e inseguro.

Diferentes das mini séries anteriores, “Maldição da Residência Hill” (2018) e “Maldição da Mansão Bly” (2020), “Missa…” não é ambientada numa típica mansão assombrada, mas numa ilha isolada, a 50 km da costa, lar de uma empobrecida comunidade de pescadores, paralisada no tempo e em franca decadência. A sensação de confinamento persiste, já que a vida insular daquelas pessoas não oferece muitas possibilidades, paisagens e perspectivas, tal qual os quartos e ambientes das casas mal-assombradas e seus segredos e maldições aprisionadas ali.. A ambientação claustrofobia, que aprisiona os personagens em verdadeiras ratoeiras psíquicas e existenciais, presentes nas séries anteriores da antologia, está obviamente presente aqui também, ainda que numa escala maior. Já no primeiro capítulo, nos minutos iniciais, o diretor apresenta um belo e estranhamente ameaçador plano aberto da ilha, onde a enxergamos pequena, estreita e cercada de água. Uma verdadeira prisão, que assim se revela ao acompanharmos o triste Riley Flynn (Zach Gilford), recém saído da cadeia onde cumpriu pena de 4 anos por dirigir embriagado e causar a morte de uma jovem (que o assombra, numa típica intervenção dos mortos – e da culpa – nos roteiros da antologia de Flanagan). A volta para ilha da infância, onde mora sua família é o retorno do homem quebrado, angustiado, devorado pela culpa. Logo, a fatalidade de uma vida sem perspectivas se dá na rima narrativa, que desloca o personagem de uma prisão para outra.

A ilha, assolada pela decadência econômica – a direção de arte é competente ao acentuar a decadência daquele ambiente por meio de casas envelhecidas, eletrodomésticos antigos e barcos enferrujados, empilhados nas poucas ruas da comunidade – por conta de um acidente ambiental do passado, sofre com o abandono de moradores e o esquecimento. Vai se construindo, desde o primeiro capitulo, a ideia de decadência e morte do lugar, como se aqueles personagens fossem progressivamente devorados e enterrados naquele lugar sem perspectivas.

É na igreja de St. Patrick, católica, que a vida respira naquela ilha. Onde o centro social e espiritual daquele comunidade ganha força e faz aquelas vidas esquecidas ganharem sentido e propósito. O ambiente insular ressalta o ensimesmamento daquelas pessoas, envoltas numa religiosidade onipresente e conservadora.

Nesse ambiente de sufocante paralisia, onde o tempo se arrasta, de tensões contidas mas aparentes, a personagem Bev Keane (extraordinariamente interpretada por Samantha Sloyan) impõe ao grupo social sua dura religiosidade e seu moralismo opressivo. Desde a sua primeira aparição, sabemos da sua imposição pelo temor que desperta nos outros, da ameaça de alguma acusação moral, combinada com declamações bíblicas em tom de ameaça e repreensão. Obviamente, por meio da personagem Bev, o roteiro aponta suas críticas para o fundamentalismo religioso (que é muito presente no país dos produtores, assim como nosso triste país). O Personagem do fundamentalista religioso não é novo em tramas do gênero. Nos lembremos do extraordinário “O Nevoeiro” (2007), de Frank Darabont, adaptando um conto de Stephen King.

E existe o Padre Paul, misterioso e jovem religioso que chega à comunidade, substituindo o veterano padre do lugar, já velho e doente, enviando pelos fiéis locais por meio de uma vaquinha para a Terra Santa, atendendo um antigo desejo do religioso. A construção do personagem Paul, obra de Hamish Linklater, é primoroso. Ele compõe um Padre Paul que inspira e intriga, com sua voz calma e baixa, tímida, que cresce e assusta no altar. Suas intenções são aparentemente redentoras, e ele traz na bagagem a capacidade de operar milagres.

Velho estereótipo do cinema, o personagem do estranho redentor se apresenta de pronto…mas nunca o compramos de fato, já que, através de pequenas pistas que o engenhoso roteiro e a direção paciente de Flanagan, vamos entendendo que aquele personagem traz consigo segredos e contradições, que não se prestam no encaixe preguiçoso de outras produções do gênero.

O Padre Paul não é ruim, no sentido das suas intenções. Ele só enxerga o mundo através do seu sistema de crenças e dos códigos da fé cristã. Não consegue, inclusive, entender o mal – o demônio? – que se aproxima, estabelecendo um inusitado e monstruoso pacto com ele.

E que ensaio sobre o nosso mundo. Somos socialmente encerrados pelos fantasmas da vida moderna. Isolados nos nossos bolsões sociais e profissionais. Vivemos em ilhas psíquicas, afogados em nossas crenças, desiludidos e perdidos em nossas ideias, concretas ou subjetivas. A Ilha Crocket é um pequeno simulacro do nosso ordenamento social. E o mal que nos assola, travestido das promessas da pós-modernidade, que vai do empreendedorismo messiânico à religião fundamentalista, propagada por radicais e espertalhões mundo afora. Vamos nos empobrecendo, adoecendo e cada vez mais nos afogando num mundo sem alívio.

E sobre a religião, a sensibilidade do cineasta trata com inteligência e respeito. Se o roteiro retrata Bev (e toda sua loucura fundamentalista) com a criticidade necessária, em nenhum momento a obra desrespeita a fé dos personagens, reconhecendo, inclusive, a força moral de vários deles. Numa cena particularmente tocante – e de um texto inspiradíssimo – o personagem Riley pergunta para sua amiga Erin Greene (Kate Siegel) o que ela imagina acontecer conosco após a nossa morte. E o que Erin diz, num cuidadoso monólogo, é uma fala adulta, poética e sensível de alguém que se inspira na fé para entender e conceber o triunfo do espírito sobre a morte. O Roteiro trabalha essa dualidade da fé, que destrói e constrói coisas belas. O Cineasta, cuja educação católica certamente o inspirou na concepção da trama, mas hoje se reconhece ateu, passa longe da tentação de promover um proselitismo ateu mal acabado.

Outro personagem interessante, que também aponta para uma certa riqueza étnica da ilha – referência ao caldeirão étnico dos Estados Unidos contemporâneo – é o delegado Sheriff Hassan (Rahul Kohli), o homem mais cosmopolita da ilha, ex-agente do FBI, muçulmano recrutado durante os anos seguintes ao 9/11, que gradativamente vai percebendo o racismo repulsivo contra si e sua comunidade, ainda que seu conhecimento linguístico e cultural fosse de muita relevância para os serviços de inteligência. É no personagem Hassan que a racionalidade se refugia, em meio ao horror e o sobrenatural. Ele é o homem atormentado pela loucura da Guerra ao Terror e pela morte da sua companheira, que escolhe a ilha Crocket para se refugiar dos ódios e cuidar da educação do seu filho, enxergando naquela comunidade alguma segurança. A fata de segurança, medo atualíssimo do nosso mundo torcido pela incerteza. Outra mensagem do roteiro: não estamos seguros, mesmo em nossas “ilhas”: nossos condomínios, em nossas cidades do interior ou na imigração para algum santuário europeu. Não estamos seguros. Porque a loucura é palpável, e se espalha por todos os lugares.

A obra de Flanagan é permeada de monstros e fantasmas, mas eles são melancólicos, de uma tristeza romântica, deslocada do nosso tempo. Não são pérfidos, mas sim vítimas do esquecimento, da culpa e da solidão. A Tristeza das nossas existências impulsionam nosso sofrimento pelo eterno. Acima de tudo, os fantasmas de Flanagan sofrem a maldição de um dia terem respirado. De terem sido Homens. Falhos.

O Roteiro não se preocupa em explicar o mal. Ele o entende como um dado natural, uma lado da natureza sempre em busca de equilíbrio. Uma eventualidade fortuita, ainda que grotesca. E, por mais ameaçadora, a ameaça fantástica não chega perto da natureza humana e sua extraordinária capacidade de amar e destruir. E de como esses elementos contraditórios, que pulsam de nossa natureza humana, acabam encaminhando o destino daquelas pessoas, naquela ilha perdida na costa oeste estadunidense. Mas é na força da redenção, a grande fonte de inspiração da obra. O seu manifesto mais contundente. E da onde tiramos as passagens mais memoráveis da obra.

Não esperava me comover tanto com “Missa da Meia Noite”, projeto que Flanagam desenhou e lutou para realizar durante muitos anos. Nela, enxerguei todo o meu desespero…

Radioactive (2019), de Marjane Satrapi

A Série “Borgen” e um ensaio sobre a política para adultos

Não venho assistindo muita coisa…mas, recentemente, maratonei a série dinamarquesa “Borgen” (2010-2013), disponível no catálogo do Netflix.A série, criada por Adam Price, acompanha a personagem Birgitte Nyborg (fantasticamente interpretada por Sidse Babett Knudsen), líder do partido moderado e que, pelas circunstâncias do cenário político, assume o posto de primeira ministra do pequeno país escandinavo.

Para nós, brasileiros, a série traz muitos benefícios. Ela nos ensina que é possível falar sobre política SEM SATANIZÁ-LA, na contramão de besteiras como “O Mecanismo” (do inacreditável Padilha) ou mesmo “House of cards” (concebida, ao menos no seu início, pelo Fincher).

Mesmo mostrando os interesses, as concessões, as negociações, as traições…existe um respeito pela prática política…pelo debate político…como a tecnologia social mais civilizada à disposição de uma sociedade moderna para que ela possa resolver seus problemas.

A série revela os bastidores da política dinamarquesa, país dos mais igualitários e civilizados do mundo. Mas, mesmo essa sociedade possui suas contradições, tensões e conflitos.

Muitos dos temas presentes em outras sociedades estão aqui, o que fez a série ter ressonância global: a extrema direita exigindo políticas restritivas aos imigrantes, os cortes nos investimentos sociais como exigência dos liberais, os socialistas distantes dos trabalhadores e agendas históricas, a espetacularização da notícia, a influência cada vez mais indisfarçável do poder financeiro no jogo político…O Roteiro equilibra bem os desafios políticos de Birgitte com as dificuldades adicionais de uma mulher ocupando um cargo executivo (pressão dos filhos, incompreensão do marido).E que direção de atores…O Elenco todo está muito bem.

Politicamente, a série aposta na tal “terceira via”…Birgitte é uma política do centro, conciliando agendas de esquerda – liberdades individuais, respeito aos imigrantes – com outras, tecnocráticas e tipicamente liberais, como privatizações e diminuição do sistema de proteção social. A primeira ministra da série é uma política realista, bem intencionada, mas sem abdicar do pragmatismo, quando necessário…Os produtores retratam o mundo do seu tempo…a extrema direita global ainda não tinha se revelado em toda a sua influência global. Por isso, e em especial nas duas últimas temporadas, a série discute mais os limites éticos da imprensa – na sua espiral de radicalização e sensacionalismo (um tema bem brasileiro) – do que propriamente as agendas ou mesmo o embate ideológico entre as diversas forças políticas no cenário dinamarquês.

Para nós, aqui no Brasil, é uma oportunidade de entender um pouco mais os ritos do sistema parlamentarista, mesmo ajustado para a realidade dinamarquesa.

Para além de concordamos (ou não) com alguns aspectos da série – sobretudo políticos – é inegável o bom texto, a produção correta e o ótimo trabalho dos atores. E, de quebra, sermos convidados a refletir sobre o solitário exercício do poder, de uma forma adulta e civilizada.

Nada mais distante do universo de Borgen do que o Brasil atual, no seu horrendo mergulho nas trevas estéticas e morais do bolsonarismo…Por isso mesmo, e sobretudo para nós, brasileiros, a série se apresenta como entretenimento indispensável.

O Cemitério das Almas Perdidas (2020) | Diretor: Rodrigo Aragão

Dois anos depois de apresentar o seu “Mata Negra (2018)”, o diretor Rodrigo Aragão lança o seu projeto fílmico mais ambicioso: “ O cemitério das Almas Perdidas” (2020)”, filme pensado pelo seu realizador desde o início da sua carreira e que marca um novo ciclo criativo para o seu cinema. Mas não é só isso. O “Cemitério…” representa um marco para o cinema fantástico brasileiro, seja pela sua escala ou mesmo, e sobretudo, pela sua ambição estética. Mas eu gostaria de avançar no meu hiperbolismo: Rodrigo Aragão fez um filme que todos nós, brasileiros e amantes desse gênero, sonhávamos desde sempre. Um filme brasileiríssimo no seu universo fantástico e que remete à nossa história, nossos sotaques e cores.

Desde a fotografia de Alexandre Barcelos, que dá luz, sombras e forma ao universo concebido por Aragão (ainda que o filme seja, em alguns momentos, muito escuro na sua paleta de cores, ressaltando sua necessidade ser visto no cinema, com toda a tecnologia disponível para ressaltar os seus aspectos técnicos) até a edição de Thiago Amaral, que organiza – e dá ritmo – ao filme, com as suas idas e vindas por épocas tão distintas, o filme constrói uma elaborada caricatura da nossa história, onde os brancos europeus atravessam o oceano trazendo, além da sua volúpia exploratória, o próprio mal, na forma do “Livro Negro de São Cipriano”. Destaco também a trilha sonora composta por João MacDowell, que mesmo excessivamente presente na narrativa, compõe com sucesso a ambientação proposta pelo longa.

O primeiro ato do filme apresenta a vinda de um jesuíta desgarrado para o Brasil, em pleno período colonial, carregando consigo o tal “Livro Negro”, escrito sob a influência do próprio diabo e abrigando as feitiçarias, praguejamentos e maldições infernais. O roteiro (do próprio Aragão) aponta o dedo para a violência explícita da “aventura colonial” europeia na américa. Sujos, maltrapilhos e muitas vezes fugitivos de crimes cometidos no passado, o homem branco traz, literalmente, o mal para essas terras.

Conforme avança o filme, vamos nos deparando com o Brasil de Aragão, meticulosamente – e pacientemente – criado desde os seus primeiros filmes: uma sociedade pré-industrial, não urbanizada, envolta em natureza misteriosa e suas criaturas, além do Fanatismo religioso e violência social, elementos sempre presentes em suas histórias.  

A história é tematicamente simples: uma trupe circense (liderada por Fred – Francisco Gaspar) faz uma parada numa cidadezinha misteriosa e envolta em mistérios e, após experimentar o repúdio das lideranças religiosas do local, são agredidos e sequestrados, encaminhados para um cemitério isolado nas aforas da cidade, que circunda um antigo mosteiro dos tempos coloniais. Sobre esse eixo central a história se desenvolve, com as já citadas idas e vindas ao passado daquele local. O Roteiro evolui e vai construindo as pontes entre épocas distintas e seus personagens.

Ainda que o segundo ato possa perder algum ritmo, pelas sucessivas idas e vindas que o roteiro costura para entendermos a trajetória dos personagens, em especial do grupo que cerca Cipriano (Renato Chocair, numa ótima – e soturna – interpretação), o filme conduz bem a história até a explosão de sons e imagens dos últimos 30 minutos. E é quando Rodrigo Aragão empenha seu talento na confecção e emprego dos efeitos práticos e digitais – quase todos eles bem eficientes – para desenvolver aquela trama, ainda que pontas sejam deixadas propositadamente abertas para o progresso – e expansão – daquela história.

Ficamos com a impressão que o diretor vai montando um intrincado – e muito ambicioso – universo fílmico, onde suas referências e personagens vão intersecionando outros filmes e projetando o seu épico fantástico para um patamar nunca alcançado pelo nosso cinema.

Pleno de referências (o longa abre com a tocante dedicatória ao mestre Mojica Marins), em especial do cinema do horror dos anos 80 e auto-referências do próprio universo de Aragão (como o próprio Livro negro de São Cipriano), o filme oferece uma riqueza visual inventiva e esteticamente bela.

O Infortúnio da pandemia, impedindo o lançamento do filme pelo circuito de exibição, é mais uma barreira a ser vencida por Aragão e sua família criativa – além da equipe técnica, atores como Carol Aragão, Diego Garcias e Francisco Gaspar, dentre outros, estão sempre presentes em seus projetos.

É certo que o filme tem viabilidade por outros mercados e canais de exibição.

O filme de Aragão é mais um exemplo do prodigioso momento do cinema fantástico brasileiro. Realizadores como Rodrigo Aragão, Dennison Ramalho, Marco Dutra, Juliana Rojas, Marcos DeBrito e tantos outros, apontam para a consolidação de um “horror brasileiro” de qualidade internacional, que se utiliza das nossas assimetrias, gostos, estilos, cores e da nossa história, violenta e fantástica, para produzir aqui, no Brasil das incertezas de hoje, um cinema muito original e necessário.

Viva o cinema Brasileiro!!!

Obs.: eu tive a oportunidade de assistir a pré-estreia do filme, na abertura do 10º Cinefantasy, no Memorial da América Latina, dia 06 de setembro. Fui como convidado do Instituto de cinema de São Paulo.

“O Náufrafo | Cast Away” (2000), Dir.: Robert Zemeckis

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O Confinamento como medida necessária para combater a Pandemia me levou a rever “O Náufrago | Cast Away” (2000), de Robert Zemeckis.
Bem, antes de mais nada: que diretor interessante é o Zemeckis, não?
Tem uma filmografia recheada de grandes sucessos (Franquia “De volta para o Futuro”, “Contato”, “Forrest Gump”, dentre outros…) e, mesmo realizando um cinema, em essência, de grandes proporções (na escala, orçamento etc), ele rapidamente se desloca do seu padrinho, S. Spielberg, em busca de uma trajetória própria e autoral.
Em vários dos seus filmes – como, por exemplo, “O Náufrago” – ele dedica seu cinema ao homem (ou mulher) que, contra e tudo e contra todos, luta pela sua sobrevivência física, moral, profissional…De certa forma, ele, assim como Spielberg, filma o americano médio que, em condições específicas, se agiganta…
De uma forma obviamente diferente, Clint Eastwood vem fazendo isso na sua atual fase criativa.
Mas, voltando para o Zemeckis, essa “coragem” de muitos dos seus personagens reflete as lutas e apostas do próprio diretor, que no começo dos anos 2000 gastou parte da sua fortuna – e prestígio – no desenvolvimento de tecnologias de animação – que podemos verificar em filmes como “A Lenda de Beowulf” e “Expresso Polar”, amargando, podemos dizer agora, prejuízos para a sua conta bancária e na sua imagem criativa…
Bem, sobre “O Náufrago”: o filme continua firme. A facilidade de Zemeckis na direção de cenas de ação se verifica na impressionante cena sequência da queda do avião.
Tom Hanks sofreu uma impressionante transformação física durante as filmagens, mas para além do corpo trabalhado, sua interpretação é cheia de carisma. Ele literalmente leva um filme de mais de 2h no colo.
E o filme oferece, de bônus, uma reflexão sobre os nossos dias: em 2000, ano de estréia do filme, a globalização era uma onda irrefreável. O Mundo ainda vivia a hegemonia econômica estadunidense, a URSS já era história – e o filme começa acompanhando o personagem de Tom Hanks, encarregado de logística da Fedex, pela Rússia, recém incorporada ao mercado capitalista.
Naqueles dias, a “eficiência capitalista” seria o motor impulsionador da civilização. E o filme, consciente ou não, celebra aquela momento específico da história, exatamente anterior ao 9/11, ao crash do subprime e ao Covid-19.
O filme oferece, portanto, o retrato de um mundo que não existe mais…

Morris convida o Diabo para Dançar – “American Dharma” (2019) | Diretor: Errol Morris

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Assisti o documentário “Americna Dharma”, do experiente documentarista Errol Morris…
O filme tenta desvendar a alma perturbada de Steve Bannon, ideólogo de Trump e da extrema direita global.
O que é temerário no projeto é que o diretor constrói, na verdade, um grande palanque fílmico para as ideias confusas e perturbadas de Bannon…
Todo o filme se da na reprodução do cenário do filme “Twelve O’Clock High,” | “Almas em Chamas” (1949), de Henry King, onde Gregory Peck interpreta um comandante de um grupo de bombardeiros durante a segunda Guerra.
Bannon estabelece um paralelo entre o surgimento da extrema direita – personificada em Trump – e as virtudes do comandante interpretado por Peck.
Morris declara, num determinado momento do filme, que sente medo de Bannon e Trump…mesmo assim, seu filme fracassa na tentativa de mostrar o perigo que Bannon representa para a democracia…A estrutura do documentário segue a estética consagrada do diretor, com a presença da trilha sonora marcante e imagens elaboradas que auxiliam a construção de um ambiente crítico…

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Steve Bannon no documentário “American Dharma”

Funciona muito em “A Névoa da Guerra”, mas aqui, sem confrontar o personagem com as suas contradições, cria simplesmente um palanque fílmico lamentável para um homem perigoso.
O próprio inicio do filme, que mostra o personagem Bannon caminhando, sozinho, por uma abandonada pista de aviação – parte da ambientação que o documentário cria em torno do filme “Almas em Chamas” – constrói a mítica de um cavaleiro solitário, heroico no seu estoicismo e disposto a dar a vida por sua causa….
Lamentável….